O g1 identificou nove servidores federais entre 149 mil procurados pela Justiça com mandados de prisão em aberto, segundo banco de dados oficial. Quatro respondem por crimes de estupro de vulnerável, ameaça e embriaguez ao volante, outros quatro por dever pensão alimentícia. Um servidor foi preso após reportagem questionar a polícia. Pelo menos oito servidores públicos federais são procurados pela Justiça há meses, mas não são presos. É o que mostra um levantamento exclusivo feito pelo g1, a partir de informações de 149 mil mandados de prisão. Para especialistas, ter procurados no serviço público mostra que o Brasil enfrenta falhas na gestão de informações. O levantamento considerou quase a metade dos 326 mil mandados de prisão existentes no país. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que tem os dados de todos os mandados, informou que não poderia fornecer detalhes dos 180 mil mandados que faltavam (clique aqui e veja como a apuração foi feita).Os dados mostram que são procurados:Um vigilante da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), condenado por estupro de vulnerável. Ele é procurado desde novembro para cumprir a pena de 12 anos de prisão.Um assistente de administração do Instituto Federal de Rondônia (IFRO), procurado desde novembro para cumprir sete meses de prisão em regime semiaberto por embriaguez ao volante. Um agente ambiental do Parque Nacional do Cabo Orange, no Amapá, que é procurado desde maio para cumprir um mês de prisão em semiaberto por ameaçar a ex-companheira.Um auxiliar operacional que atua na Secretaria de Gestão Estratégica do Governo de Roraima, alvo desde setembro de um mandado de prisão preventiva numa investigação sobre estupro de vulnerável. Ele ainda não foi julgado.Outros quatro servidores— um professor substituto, um médico, um agente especial e um analista — são alvo de mandados de prisão pelo não pagamento de pensão alimentícia, uma prisão civil (não criminal) que é revogada assim que a pessoa paga a dívida. Além deles, o g1 encontrou um agente de portaria de uma escola do Amapá que, desde 2019, era procurado em uma investigação sobre furto qualificado. Na quarta-feira (12), após a reportagem entrar em contato com a Polícia Civil do estado, o servidor foi preso. Ele também ainda não foi julgado.Mesmo com mandados de prisão em aberto, a investigação ou condenação por um crime, não resulta automaticamente na perda do cargo público (saiba mais abaixo).Tem uma sugestão de reportagem? Fale com o g1Para especialistas, há 'amadorismo' e 'falta de integração' na gestão públicaPara Rafael Alcadipani, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a dificuldade em cumprir mandados de prisão contra servidores evidencia falhas na gestão de informações pelo Poder Público brasileiro."Isso é uma amostra da dificuldade, do amadorismo com que a gente lida [com casos de pessoas procuradas pela Justiça]. Estamos na era digital, falando de inteligência artificial, enquanto o Estado brasileiro ainda é analógico na sua gestão de informações", afirma. Existe um descompasso gritante entre o que se tem de tecnologia e de possibilidade de gestão de dados hoje, e aquilo que a gente entrega para o cidadão. Não é razoável você supor que uma pessoa que está sendo procurada pela Justiça está trabalhando em uma repartição pública."O presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol), Rodolfo Laterza, diz que "causa absoluta perplexidade que essas pessoas sigam trabalhando, já que possuem endereço fixo e poderiam ser capturadas, com o cumprimento da ordem judicial".Segundo Laterza, a falha decorre de problemas na comunicação entre os órgãos. "A integração das plataformas de bancos de dados entre o Poder Executivo [responsável pelas polícias] e o Judiciário [pelos mandados de prisão] enfrenta sérios problemas de execução. Para se ter uma ideia, intimações policiais frequentemente chegam com atraso porque passam por vários setores antes de chegarem ao destinatário correto. Em alguns casos, o Judiciário até envia para o órgão errado."Ao g1, o CNJ, responsável pela administração do Banco Nacional de Mandados de Prisão (BNMP), afirmou que mantém um acordo que permite o acesso integral dos mandados com o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP).O BNMP é um portal que reúne ordens de prisão do país e é acessível a qualquer cidadão. Cabe aos tribunais a alimentação dos dados, incluindo ou excluindo os mandados quando estes são revogados ou cumpridos.Segundo o CNJ, cabe ao Ministério da Justiça repassar os dados do BNMP para todos os órgãos de segurança pública do país. Procurado, o Ministério da Justiça e Segurança Pública informou que não iria se manifestar sobre o caso.Saiba quem são os servidores procurados e os crimes: Vigilante de universidade de Mato Grosso foi condenado por estupro de vulnerávelVigilante da Secretaria de Infraestrutura do Campus da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) desde 2005, Carlos Jose de Figueiredo foi condenado por abusar de duas vítimas em várias ocasiões. Desde novembro de 2024 ele é procurado para cumprir uma pena de 12 anos de prisão em regime fechado.O g1 esteve na universidade onde Figueiredo trabalha. O responsável pelo setor confirmou que ele trabalha na unidade, mas que não estava presente no momento. A reportagem tentou contato com o servidor por ligações e mensagens na quarta-feira (12), mas não obteve retorno até a publicação da reportagem.A UFMT não respondeu. O Tribunal de Justiça do Mato Grosso e a vara responsável pelo caso afirmaram que o processo está sob sigilo.Carlos Figueiredo, servidor na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) alvo de mandado de prisãoReprodução/redes sociaisAuxiliar no governo de Roraima é investigado por estupro de vulnerávelIvanildo Costa de Souza é funcionário federal desde 1984, e atua desde 1991 como auxiliar operacional de serviços diversos na Secretaria de Gestão Estratégica e Administração do Estado de Roraima, em Boa Vista.Em setembro de 2024, o Tribunal de Justiça de Roraima expediu um mandado de prisão preventiva contra Souza, num inquérito em que ele é suspeito de estupro de vulnerável. Segundo o mandado, o objetivo é "evitar que novos crimes sejam praticados".Desde então, ele não aparece mais no local de trabalho, segundo colegas e o próprio órgão. Um processo administrativo disciplinar foi instaurado para avaliar o caso. O g1 procurou a defesa do servidor que disse que, devido ao sigilo do processo, não vai se manifestar. O Tribunal de Justiça de Roraima e a vara criminal afirmaram que o mandado segue vigente.Funcionário em escola do Amapá é preso após g1 questionar a políciaFrancineive Caldas da Silva é funcionário federal, e atua desde dezembro de 2023 como agente de portaria em uma escola municipal de Calçoene (AP). Desde 2019, ele é alvo de um mandado de prisão preventiva por supostamente ter se envolvido em um furto qualificado.Segundo o processo, Silva e outros três homens teriam levado oito animais de grande porte de uma fazenda em Cutias (AP), a 354 km de Calçoene. O caso ainda não julgado, portanto, ele não foi condenado ou absolvido. Na quarta-feira (12), após o g1 procurar a Polícia Civil do Amapá para questionar sobre o mandado, Silva foi preso. O g1 não conseguiu contato com a defesa do agente de portaria. A Prefeitura de Calçoene informou que não tinha conhecimento da condenação. O Ministério da Gestão e Inovação, que é o atual responsável pelo contrato do servidor, ressaltou que as certidões criminais de Silva estão sem nenhum registro de crimes, e que iria buscar detalhes sobre o processo que resultou na prisão. A certidão negativa de antecedentes criminais, em regra, considera apenas condenações definitivas, não levando em conta investigações em andamento, o que não se aplica a Silva neste processo.Agente do ICMBio no Amapá foi condenado por ameaçaAgente temporário do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) no Parque Nacional do Cabo Orange (AP) desde setembro de 2023, Orleans Silva Morais foi condenado a um mês de prisão em regime semiaberto pelo crime de ameaça por ter ameaçado cortar a ex-companheira em 2019.No regime semiaberto, o preso dorme na prisão, mas pode sair de dia para trabalhar ou estudar.O mandado foi expedido em maio de 2024 e, segundo a Vara de Execução Penal de Macapá, segue em vigor.O advogado de Morais, José Reinaldo Soares, afirma desconhecer o mandado de prisão.Assistente de instituto federal de Rondônia foi condenado por dirigir bêbadoAssistente de administração no Instituto Federal de Rondônia (IFRO) desde 2011, Alecsandro de Goes Guedes foi condenado, em novembro de 2024, a sete meses e 25 dias de prisão em regime semiaberto por dirigir embriagado.O g1 esteve no IFRO na quarta-feira (12) quando a chefia do setor em que Guedes trabalha informou que ele participaria de um evento. O servidor, entretanto, não apareceu. O g1 tentou contato com ele por telefone, mas as ligações não foram atendidas. A Vara de Execuções Penais de Porto Velho disse que o mandado contra Guedes segue ativo. O Tribunal de Justiça de Rondônia não comentou sobre o caso.O que acontece quando um servidor público é alvo de um mandado de prisão?O g1 conversou com especialistas em direito administrativo para esclarecer quais são as consequências para servidores públicos que se tornam alvos de um mandado de prisão. Veja abaixo:A perda do cargo é automática?Não necessariamente. A investigação ou condenação por um crime não implica automaticamente na perda do cargo público. Para que isso ocorra, é necessário um julgamento no qual o juiz declare expressamente essa decisão, levando em consideração a natureza do crime e sua relação com as funções exercidas pelo servidor, explica Cristina Braga, advogada especialista em servidores públicos e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).Em casos de crimes como tortura ou violência contra a mulher por razões de gênero, a legislação prevê a perda do cargo de forma automática, segundo Braga.O Código Penal também prevê a perda de cargo caso o servidor seja condenado a pena superior a um ano por crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a administração pública; ou superior a quatro anos nos demais casos.Além da expulsão do serviço público, outras punições que os servidores podem sofrer incluem advertência, suspensão de até 90 dias, e cassação da aposentadoria.O que o órgão público pode fazer? O órgão público pode abrir uma investigação administrativa independentemente do andamento do processo criminal.Mesmo no caso de devedores de pensão alimentícia, se a inadimplência comprometer a moralidade administrativa ou afetar a imagem do serviço público, um processo disciplinar pode ser instaurado. Vale lembrar que a legislação permite o desconto da pensão diretamente na folha de pagamento do servidor.Como o g1 descobriu servidores entre os procurados pela JustiçaPara identificar os servidores procurados pela Justiça, o g1 cruzou duas bases de dados: o Banco Nacional de Mandados de Prisão (BNMP), mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e alimentado pelos tribunais, e a base dos servidores públicos federais, gerida pelo governo federal.Os mandados de prisão podem ser consultados por qualquer pessoa no portal do BNMP de duas formas: individualmente, por meio de uma pesquisa pelo nome do procurado (ou outros dados pessoais, como CPF) ou pelo número do processo; ou por meio de uma API (sigla em inglês para Application Programming Interface - Interface de Programação de Aplicações), um sistema que permite baixar os dados de vários mandados, sem a necessidade de buscas individuais (o BNMP tem mais de 300 mil mandados de prisão.Mandado de prisão expedido contra Carlos Jose de Figueiredo no BNMP.Arte g1Ao longo de quase cinco meses, a equipe do g1 utilizou a API, por meio de linguagem de programação, para baixar os dados do mandados. No entanto, o CNJ impõe restrições à extração de grandes volumes de informações. Por esse motivo, foram obtidos os dados de 149.341 mandados, dos 326.345 existentes à época em que o levantamento começou.Depois, o g1 cruzou os dados desses 149 mil mandados de prisão com a lista de servidores federais da ativa do país que, quando foi baixada, tinha 762.657 nomes, comparando os CPFs que apareciam nas duas bases (na dos servidores, apenas parte do CPF é exibido).Desse cruzamento, resultaram 13 casos em que, aparentemente, a mesma pessoa estavam nas duas bases. O g1, então, buscou informações sobre elas e sobre os mandados de prisão em outras fontes de dados, inclusive presencialmente, para confirmar as identidades e que esses mandados ainda estavam valendo. Ao final, resultaram os oito casos citados nessa reportagem.* Colaboraram nesta reportagem: Arilson Freires (g1 Amapá), Rafael Aleixo (g1 Amapá), Afonso Ferreira (g1 DF), Marco Antonio Martins (g1 Rio de Janeiro), Pollyana Araújo (g1 Mato Grosso), Stephane Gomes (g1 Mato Grosso), Victória Oliveira (g1 Mato Grosso), Mateus Santos (g1 Rondônia), Caíque Rodrigues (g1 Roraima), Sidney Silva (RN).